Frei Luís de Sousa
Representado, a primeira vez, em Lisboa por uma sociedade particular no Teatro da Quinta do Pinheiro em 4 de julho de 1843
Pessoas
Manuel (Frei Luís) de Sousa
Dona Madalena de Vilhena
Dona Maria de Noronha
Frei Jorge Coutinho
O Romeiro
Telmo Pais
O Prior de Benfica
Miranda
O Arcebispo de Lisboa
Doroteia
O Irmão Converso
Coro de frades de S. Domingos, Clérigos do Arcebispo, frades, criados, etc.
Lugar da cena - Almada
Ato Primeiro
Câmara antiga, ornada com todo o luxo e caprichosa elegância portuguesa dos princípios do século dezassete. Porcelanas, charões, sedas, flores, etc. No fundo, duas grandes janelas rasgadas, dando para um eirado que olha sobre o Tejo e donde se vê toda Lisboa; entre as janelas o retrato, em corpo inteiro, de um cavaleiro moço, vestido de preto, com a cruz branca de noviço de S. João de Jerusalém. Defronte e para a boca da cena um bufete pequeno, coberto de rico pano de veludo verde franjado de prata; sobre o bufete alguns livros, obras de tapeçaria meias feitas e um vaso da China de colo alto, com flores. Algumas cadeiras antigas, tamboretes rasos, contadores. Da direita do espectador, porta de comunicação para o interior da casa, outra da esquerda para o exterior. É no fim da tarde.
Cena I
Madalena só, sentada junto à banca, os pés sobre uma grande almofada, um livro aberto no regaço, e as mãos cruzadas sobre ele, como quem descaiu da leitura na meditação.
Madalena (repetindo maquinalmente e devagar o que acaba de ler).
Naquele engano d'alma ledo e cedo,
que a fortuna não deixa durar muito...
Com paz e alegria dalma.. um engano, um engano de poucos instantes que seja... deve de ser a felicidade suprema neste mundo. E que importa que o não deixe durar muito a fortuna? Viveu-se, pode-se morrer. Mas eu!... (Pausa). Oh! que o não saiba ele ao menos, que não suspeite o estado em que eu vivo... este medo, estes continuos terrores, que ainda me não deixaram gozar um só momento de toda a imensa felicidade que me dava o seu amor. Oh! que amor, que felicidade... que desgraça a minha! (Torna a descair em profunda meditação; silêncio breve).
Análise da Cena I
Cena II
Madelena, Telmo Pais
Telmo (chegando ao pé de Madalena, que o não sentiu entrar) - A minha senhora está a ler?...
Madalena (despertando) - Ah! sois vós, Telmo... Não, já não leio: há pouca luz de dia já; confundia-me a vista. E é um bonito livro este! o teu valido, aquele nosso livro, Telmo.
Telmo (deitando-lhe os olhos) - Oh! oh!, livro para damas - e para cavaleiros... e para todos: um livro que serve para todos - como não há outro, tirante o respeito devido ao da palavra de Deus! Mas esse não tenho eu a consolação de ler, que não sei latim como meu senhor... quero dizer como o Sr. Manuel de Sousa Coutinho - que, lá isso!... acabado escolar é ele. E assim foi seu pai antes dele, que muito bem o conheci: grande homem! Muitas letras, e de muito galante prática, e não somenos as outras partes de cavaleiro: uma gravidade!... Já não há daquela gente. Mas, minha senhora, isto de a palavra de Deus estar assim noutra língua, numa língua que a gente... que toda a gente não entende... confesso-vos que aquele mercador inglês da Rua Nova, que aqui vem às vezes, tem-me dito suas cousas que me quadram... E Deus me perdoe, que eu creio que o homem é herege, desta seita nova d’Alemanha ou d’lnglaterra. Será?
Madalena - Olhai, Telmo; eu não vos quero dar conselhos: bem sabeis que desde o tempo que... que...
Telmo - Que já lá vai, que era outro tempo.
Madalena - Pois sim... (suspira). Eu era uma criança; pouco maior era que Maria.
Telmo - Não, a senhora D. Maria já é mais alta.
Madalena - É verdade, tem crescido de mais, e de repente, nestes dous meses últimos...
Telmo - Então! Tem treze anos feitos, é quase uma senhora, está uma senhora... (aparte). Uma senhora aquela... pobre menina!
Madalena (com as lágrimas nos olhos) - És muito amigo dela, Telmo?
Telmo - Se sou! Um anjo como aquele... uma viveza, um espírito!... e então que coração!
Madalena - Filha da minha alma! (Pausa; mudando de tom). Mas olha, meu Telmo, torno a dizer-to: eu não sei como hei-de fazer para te dar conselhos. Conheci-te de tão criança, de quando casei a... a... a... primeira vez, costumei-me a olhar para ti com tal respeito - já então eras o que hoje és, o escudeiro valido, o familiar quase parente, o amigo velho e provado de teus amos...
Telmo (enternecido) - Não digais mais, senhora, não me lembreis de tudo o que eu era.
Madalena (quase ofendida) - Porquê? Não és hoje o mesmo, ou mais ainda, se é possível? Quitaram-te alguma coisa da confiança, do respeito, do amor e carinho a que estava costumado o aio fiel de meu senhor D. João de Portugal, que Deus tenha em glória?
Telmo (aparte) - Terá...
Madalena - O amigo e camarada antigo de seu pai?
Telmo - Não, minha senhora, não, por certo.
Madalena - Então?...
Telmo - Nada. Continuai, dizei, minha senhora.
Madalena - Pois está bem. Digo que mal sei dar-vos conselhos, e não queria dar-vos ordens... Mas, meu amigo, tu tomaste - e com muito gosto meu e de seu pai - um ascendente no espírito de Maria... tal que não ouve, não crê, não sabe senão o que lhe dizes. Quase que és tu a sua dona, a sua aia de criação. Parece-me... eu sei... não fales com ela desse modo, nessas coisas.
Telmo - O quê? No que me disse o inglês sobre a Sagrada Escritura, que eles lá têm em sua língua, e que?...
Madalena - Sim... nisso decerto... e em tantas outras coisas tão altas, tão fora de sua idade, e muitas de seu sexo também, que aquela criança está sempre a querer saber, a perguntar. É a minha única filha; não tenho... nunca tivemos outra... e, além de tudo o mais, bem vês que não é uma criança... muito... muito forte.
Telmo - É... delgadinha, é. Háde enrijar. É tê-la por aqui, fora daqueles ares apestados de Lisboa; e deixai, que se há de pôr outra.
Madalena - Filha do meu coração!
Telmo - E do meu. Pois não se lembra, minha senhora, que ao princípio era uma criança que eu não podia... - é verdade, não a podia ver: já sabereis porquê mas vê-la, era ver... Deus me perdoe!... nem eu sei... E daí começou-me a crescer, a olhar para mim com aqueles olhos... a fazer-me tais meiguices, e a fazer-se-me um anjo tal de formosura e de bondade, que - vedes-me aqui agora, que lhe quero mais do que seu pai.
Madalena (sorrindo) - Isso agora...
Telmo - Do que vós.
Madalena - Ora, meu Telmo!
Telmo - Mais, muito mais. E veremos: tenho cá uma coisa que me diz que, antes de muito, se há de ver quem é que quer mais à nossa menina nesta casa.
Madalena (assustada) - Está bom; não entremos com os teus agouros e profecias do costume: são sempre de aterrar... Deixemo-nos de futuros...
Telmo - Deixemo-nos, que não são bons.
Madalena - E de passados também...
Telmo - Também.
Madalena - E vamos ao que importa agora. Maria tem uma compreensão...
Telmo - Compreende tudo!
Madalena - Mais do que convém.
Telmo - Às vezes.
Madalena - É preciso moderá-la.
Telmo - É o que eu faço.
Madalena - Não lhe dizer...
Telmo - Não lhe digo nada que não possa, que não deva saber uma donzela honesta e digna de melhor... de melhor...
Madalena - Melhor quê?
Telmo - De nascer em melhor estado. Quisestes ouvi-lo... está dito.
Madalena - Oh, Telmo! Deus te perdoe o mal que me fazes. (Desata a chorar).
Telmo (ajoelhando e beijando-lhe a mão) - Senhora… senhora D. Madalena, minha ama, minha senhora… castigai-me… mandai-me já castigar, mandai-me cortar esta língua perra que não toma insino… Oh! senhora, senhora! é vossa filha, é a filha do senhor Manuel de Sousa Coutinho, fidalgo de tanto primor e de tão bom linhagem como os que se têm por melhores neste reino, em toda a Espanha. A senhora D. Maria… a minha querida D. Maria é sangue de Vilhenas e de Sousas; não precisa mais nada, mais nada, minha senhora, para ser... para ser...
Madalena - Calai-vos, calai-vos, pelas dores de Jesus Cristo, homem.
Telmo (soluçando) — Minha rica senhora!...
Madalena (enxuga os olhos e toma uma atitude grave e firme) - Levantai-vos, Telmo, e ouvi-me. (Telmo levanta-se). Ouvi-me com atenção. É a primeira vez e será a última vez que vos falo deste modo e em tal assunto. Vós fostes o aio e o amigo de meu senhor... de meu primeiro marido, o senhor D. João de Portugal; tínheis sido o companheiro de trabalhos e de glória de seu ilustre pai, aquele nobre conde de Vimioso, que eu de tamanhinha me acostumei a reverenciar como pai. Entrei depois nesta família de tanto respeito; achei-vos parte dela, e quase que vos tomei a mesma amizade que aos outros... Chegastes a alcançar um poder no meu espírito, quase maior... - decerto maior que nenhum deles. O que sabeis da vida e do mundo, o que tendes adquirido na conversação dos homens e dos livros - porém, mais que tudo, o que de vosso coração fui vendo e admirando cada vez mais - me fizeram ter-vos numa conta, deixar-vos tomar, entregar-vos eu mesma tal autoridade nesta casa e sobre minha pessoa... que outros poderão estranhar...
Telmo - Emendai-o, senhora.
Madalena - Não, Telmo, não preciso nem quero emendá-lo. Mas agora deixai-me falar. Depois que fiquei só, depois daquela funesta jornada de África que me deixou viúva, órfã e sem ninguém... sem ninguém, e numa idade... com dezassete anos! - em vós, Telmo, em vós só achei o carinho e protecção, o amparo que eu precisava. Ficastes-me em lugar de pai; e eu... salvo numa coisa! - tenho sido para vós, tenho-vos obedecido como filha.
Telmo - Oh, minha senhora, minha senhora! mas essa coisa em que vos apartastes dos meus conselhos...
Madalena - Para essa houve poder maior que as minhas forças... D. João ficou naquela batalha com seu pai, com a flor da nossa gente. (Sinal de impaciência em Telmo). Sabeis como chorei a sua perda, como respeitei a sua memória, como durante sete anos, incrédula a tantas provas e testimunhos da sua morte, o fiz procurar por essas costas de Berberia, por todas as sejanas de Fez e Marrocos, por todos quantos aduares de Alarves aí houve... Cabedais e valimento, tudo se empregou; gastaram-se grossas quantias; os embaixadores de Portugal e Castela tiveram ordens apertadas de o buscar por toda a parte; aos padres da Redenção, a quanto religioso ou mercador podia penetrar naquelas terras, a todos se encomendava o seguir a pista do mais leve indício que pudesse desmentir, pôr em dúvida ao menos aquela notícia que logo viera com as primeiras novas da batalha d’Alcácer. Tudo inútil; e a ninguém mais ficou resto de dúvida...
Telmo - Senão a mim.
Madalena - Dúvida de fiel servidor, esperança de leal amigo, meu bom Telmo, que diz com vosso coração, mas que tem atormentado o meu... E então sem nenhum fundamento, sem o mais leve indício... Pois dizei-me em consciência, dizei-mo de uma vez, claro e desinganado: a que se apega esta vossa credulidade de sete... e hoje mais catorze... vinte e um anos?
Telmo (gravemente) — Às palavras, às formais palavras daquela carta, escrita na própria madrugada do dia da batalha, e entregue a Frei Jorge, que vo-la trouxe. - «Vivo ou morto» - rezava ela - vivo ou morto... Não me esqueceu uma letra daquelas palavras; e eu sei que homem era meu amo para as escrever em vão: - «vivo ou morto, Madalena, hei de ver-vos pelo menos ainda uma vez neste mundo». - Não era assim que dizia?
Madalena (aterrada) - Era.
Telmo - Vivo não veio... inda mal! E morto... a sua alma, a sua figura...
Madalena (possuída de grande terror) - Jesus, homem!
Telmo - Não vos apareceu de certo.
Madalena - Não; credo!
Telmo (misterioso) - Bem sei que não. Queria-vos muito; e a sua primeira visita, como de razão, seria para minha senhora. Mas não se ia sem aparecer também ao seu aio velho.
Madalena - Valha-me Deus, Telmo! Conheço que desarrazoais; e contudo as vossas palavras metem-me medo... Não me façais mais desgraçada.
Telmo - Desgraçada! Porquê? Não sois feliz na companhia do homem que amais, nos braços do homem a quem sempre quisestes mais sobre todos? Que o pobre de meu amo... respeito, devoção, lealdade, tudo lhe tivestes, como tão nobre e honrada senhora que sois... mas amor!
Madalena - Não está em nós dá-lo, nem quitá-lo, amigo.
Telmo - Assim é. Mas os ciúmes que meu amo não teve nunca - bem sabeis que têmpera d’alma era aquela - tenho-os eu... aqui está a verdade nua e crua... tenho-os eu por ele. Não posso, não posso ver... e desejo, quero, forcejo por me acostumar... mas não posso. Manuel de Sousa... o Senhor Manuel de Sousa Coutinho é um guapo cavalheiro, honrado fidalgo, bom português... mas - mas não é, nunca há de ser aquele espelho de cavalaria e gentileza, aquela flor dos bons... Ah, meu nobre, meu santo amo!
Madalena - Pois sim, tereis razão... tendes razão, será tudo como dizeis. Mas refleti, que haveis cabedal de inteligência para muito; eu resolvi-me por fim a casar com Manuel de Sousa; foi do aprazimento geral de nossas famílias, da própria família de meu primeiro marido, que bem sabeis quanto me estima; vivemos (com afectação) seguros, em paz e felizes… há catorze anos. Temos esta filha, esta querida Maria, que é todo o gosto e ânsia da nossa vida. Abençoou-nos Deus na formosura, no engenho, nos dotes admiráveis daquele anjo.. E tu, tu, meu Telmo, que és tão seu que chegas a pretender ter-lhe mais amor que nós mesmos...
Telmo - Não, não tenho!
Madalena - Pois tens: melhor! E és tu o que andas continuamente e quase por acinte a sustentar essa quimera, a levantar esse fantasma, cuja sombra, a mais remota, bastaria para enodoar a pureza daquela inocente, para condenar a eterna desonra a mãe e a filha!... (Telmo dá sinais de grande agitação). Ora dize: já pensaste bem no mal que estás fazendo? Eu bem sei que a ninguém neste mundo, senão a mim, falas em tais cousas... falas assim como hoje temos falado... mas as tuas palavras misteriosas, as tuas alusões frequentes a esse desgraçado rei D. Sebastião, que o seu mais desgraçado povo ainda não quis acreditar que morresse, por quem ainda espera em sua leal incredulidade, - esses contínuos agouros, em que andas sempre, de uma desgraça que está iminente sobre a nossa família... não vês que estás excitando com tudo isso a curiosidade daquela criança, aguçando-lhe o espírito - já tão perspicaz! - a imaginar, a descobrir... quem sabe se a acreditar nessa prodigiosa desgraça, em que tu mesmo... tu mesmo... sim, não crês deveras? Não crês, mas achas não sei que doloroso prazer em ter sempre viva e suspensa essa dúvida fatal. E então considera, vê: se um terror semelhante chega a entrar naquela alma, quem lho há de tirar nunca mais? O que há de ser dela e de nós? Não a perdes, não a matas... não me matas a minha filha?
Telmo (em grande agitacão durante a fala precedente, fica pensativo e aterrado; fala depois como para si) - É verdade que sim! A morte era certa. E não há de morrer: não, não, não, três vezes não. (Para Madalena). À fé de escudeiro honrado, senhora D. Madalena, a minha boca não se abre mais; e o meu espírito há de... há de fechar-se também... (aparte). Não é possível, mas eu hei de salvar o meu anjo do céu! (Alto para Madalena). Está dito, minha senhora.
Madalena - Ora Deus to pague. Hoje é o último dia de nossa vida que se fala em tal.
Telmo - O último.
Madalena - Ora pois, ide, ide ver o que ela faz (levantando-se): que não esteja a ler ainda, a estudar sempre. (Telmo vai a sair). E olhai: chegai-me depois ali a S. Paulo, ou mandai, se não podeis...
Telmo - Ao convento dos domínicos? Pois não posso!… quatro passadas.
Madalena - E dizei a meu cunhado, a Frei Jorge Coutinho, que me está dando cuidado a demora de meu marido em Lisboa; que me prometeu de vir antes de véspera e não veio; que é quase noite, e que já não estou contente com a tardança. (Chega à varanda e olha para o rio). O ar está sereno, o mar tão quieto, e a tarde tão linda... quase que não há vento, é uma viração que afaga... Oh! e quantas faluas navegando tão garridas por esse Tejo! Talvez nalguma delas - naquela tão bonita - venha Manuel de Sousa. Mas neste tempo não há que fiar no Tejo: dum instante para o outro levanta-se uma nortada... e então aqui o pontal de Cacilhas! Que ele é tão bom mareante... Ora, um cavaleiro de Malta! (Olha para o retrato com amor). Não é isso o que me dá maior cuidado; mas em Lisboa ainda há peste, ainda não estão limpos os ares… e essoutros ares que por aí correm destas alterações públicas, destas malquerenças entre castelhanos e portugueses! Aquele carácter inflexível de Manuel de Sousa traz-me num susto contínuo. Vai, vai a Frei Jorge, que diga se sabe alguma coisa, que me assossegue, se puder.
Análise da Cena II